domingo, 28 de março de 2010
Como treinar seu dragão.
Foi uma coincidência que ontem tenha sido um dia de tributo a amizade. Dia de estar com as pessoas queridas e de ganhar muitos abraços. Assim como tem gente que me deixa triste, é gostoso ver que tem gente que gosta de me deixar feliz. Eis a doçura da dialética da vida. Foi coincidência que eu tenha começado o domingo lendo na revista "Muito" uma entrevista com o André Setaro, professor da FACOM (Faculdade de Comunicação da UFBA) e crítico de cinema, falando sobre o cinema como incursão poética onde a chave é a linguagem de cada filme. Que lindo isso.
Hoje foi dia de cinema em família e considerando que meu irmão tem cinco anos, cinema em família quer dizer filmes para criança. Fomos assistir "Como treinar seu dragão". Se cinema é linguagem, esse filme fala muito bem sobre as metáforas possíveis da sucessão de gerações - o novo sendo mal visto e até não visto pelo velho que fez e conhece as regras: clichê nas ciências, como quando Copérnico disse que o universo não girava em torno da Terra e portanto não erámos senhores do universo, quando Darwin disse que éramos um produto evolutivo e não uma criação divina feita para desempenhar o papel de senhores do planeta e quando Freud disse que não somos sequer senhores de nós mesmos, pois que somos regidos por um inconsciente que não acessamos; clichê nas artes que fazem uma sobreposição constante entre gerações clássicas e modernas; clichê na onda de gerações analisadas antropologicamente: depois da revolução sexual, tivemos o maior indíce de casamentos, depois da liberação da "ficada" e da desmarginalização do sexo tivemos a febre dos anéis da pureza com a promessa de guardar-se virgem até o casamento e etc. A relação de Soluço (um garoto doce, personagem principal do filme) com seu pai, o Viking forte e líder da comunidade é o retrato de todos esses conflitos de sucessão, de todas as barreiras que se faz entre o que se acredita e o que se quer provar, o que se julga que é necessário e o que se descobre que é essencial e a dureza, para os pais, de verem nos filhos sua única chance de serem perpetuados - logo, como faz o Viking caçador de dragões mais valentes da região quando sabe que vai ser perpetuado pelo franzino garoto que não deseja matar dragões? Imagino que seja uma sensação parecida com a do pai promotor que vê o filho se enveredar pelas artes plásticas. Imagino que seja a reação de todos nós diante da impossibilidade de controlar o que geramos, da impossibilidade de imprimir nossos desejos aos que nos sucedem - cada um tem desejos por si só, e só. Soluço e seu pai são o puro retrato da incomunicabilidade.
Mas, adiante de toda essa riqueza de análise num filme para crianças cheio de cenas lindas visualmente (a que Banguela, Soluço e Astrid voam juntos pelo céu no pôr do sol é de enternecer o coração) e de falas com aspirações sinceramente psicanálitics -diz Soluço para o seu tutor "meu pai chama a garçonete e diz: "Ei, eu pedi um sanduíche de filho filé, recheado de bravura, coberto com molho de Glória e acompanhado de coragem e força e não esse sanduíche de espinha de peixe" - para mim a melhor cena é simples, sem díalogos e completamente sentimental.
O filme não se ampara em animais falantes, ou seja, Banguela, o dragão negro de Soluço, não consegue falar com palavras - a relação de amizade que se constrói entre eles é basicamente um acordo de silêncios, uma leitura de olhares, dois tateando vagos em direção ao rumo desconhecido da infinidade do outro (menino e dragão, criaturas tão diversas - acho tão bonito o dragão ser preto: o que é o outro que não somos nós que não mistério e escuridão? Embora depois, em outra cena das mais fofas, Soluço confidencie que não conseguiu matar Banguela, por que, ao sentir que ele estava com tanto medo quanto o próprio Soluço, ele percebeu o quanto dele havia no dragão). Depois de muitas etapas de aproximação, a cena definitiva para que o carinho, a amizade, a fidelidade, o companheirismo e a amizade se estabeleça entre eles é a metáfora mais bonita do filme.
Soluço, com um graveto, desenha Banguela na terra. Banguela, assistindo o menino desenhá-lo, pega um tronco de árvore e também começa, desajeitadamente, a rabiscar a terra. Quando Soluço se vira, ele pisa na linha que Banguela desenhou. Banguela rosna. Ele tira o pé, Banguela sorri. Ele pisa, um rosnado. Tira, um sorriso. Então, Soluço começa a fazer uma dança para que possa cruzar todo o terreno do desenho sem tocar os pés nas linhas desenhadas pelo amigo - ele vai virando, rodopiando, se desequilibrando, medindo cada passo - é lindo. O que é uma amizade sincera senão a nossa dança eterna para que, conhecendo a trajetória do outro, as linhas tortas que o moldaram a ser como é, nunca traí-lo, magoá-lo ou pisar num calo escondido que sabíamos estar no nosso caminho? O que é a amizade sincera senão a compreensão de traços tortos e aleatórios que são as coisas que realmente importam para quem para nós importa?
O final do filme, quando ambos estão feridos e bastante inseridos na falta, deixa claro o quanto a amizade é um meio de sobrevivência e um local onde podemos deixar repousar feridas, porque, no fundo no fundo, todos as posssuímos expostas e ainda assim, podemos amar e ser amados. Clichê, mas reconfortante.
Eu sei que sou uma manteiga derretida das mais bobas, mas achei lindo!
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Olá, juliana!! achei muito legal sua análise do filme, o qual também gostei muito. as metáforas que este filme apresenta são inúmeras, e acho um ponto interessante é a leitura da vila viking como um aparelho psíquico lidando com suas pulsões (dragões). o filme mostra uma visão de que lutar contra os dragões na mais leva a uma repetição sem fim, enquanto o saber fazer com isso que insiste pode gerar uma nova economia. Não, como você escreveu, sem perder algo - a falta.
ResponderExcluirUma unica pergunta , soluço no filme perde o pé ? ... eu fiquei sem entender o final do filme pois perdi o começo ...mas casso a resposta seja SIM!. N MUDARA minha opnião sobre o filme...é um filme 10! e com direito a continuação. e vamos ser sinceros ...ficou bem legal ele sem pé, já que está combinando com a furia da meia noite . obg.
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