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quarta-feira, 1 de setembro de 2010

tempos de delicadeza



Ontem eu estava em pé no corredor da faculdade, discutindo um trabalho com uma colega querida, apoiada na minha muleta, naquela preguiça matutina que só é possível quando você tem um mundo de coisa para resolver quando uma moça, que foi minha colega em Farmacologia (aquela risada de malícia para farmacologia a gente insere aqui, por favor) parou para falar com a gente e disse o seguinte "olha, eu sou do tipo de gente que fala com as pessoas as coisas que acha, mas com você eu sempre tive um pouquinho de vergonha...mas olha só, deixa eu te falar, você tem uma voz muito bonita. toda vez que você falava na sala eu ficava besta como sua voz é bonita,meio rouca, soa bem, como você fala bem, é articulada, eu ficava quietinha prestando atenção no que você estava dizendo e pensando nisso. eu sou besta, não sei nem seu nome, mas tava pra te dizer isso". muito legal ouvir um elogio inesperado de uma pessoa inesperada num dia inesperado. muito legal ver alguém se abrindo para falar bem do outro assim... e bem raro, não é?

então que hoje estávamos assistindo "O Filho da Noiva" para fazer um estudo de caso (mais um? que surpreendente hein) e embora eu tivesse que analisar a dicotomia e diferenciações do personagem em seu processo de doença e saúde, eu fiquei mesmo foi analisando essa falta de tempo pra a delicadeza, essa vida que chega e vai tomando a nossa vida, empurrando prazos, compromissos, obrigações, nos arrastando das coisas e pessoas que mais amamos, nos fazendo crer que tudo é cobrança e problema, inclusive as melhores coisas da vida - que nos pedem tempo sim, mas nos recompensam com uma delicadeza que já não sabemos ver e nomear. o filme é uma pérola, uma pérola de como colocar olhos abertos para o romantismo do cotidiano, a sutileza dos sonhos dos outros e a disponibilidade para um encontro inteiro com eles é essencial para a saúde de uma vida.

mas o que é mesmo uma vida? do que é feita uma vida? de que tecido se compõem uma vida? ontem minha mãe levou meu avô e minha avó para visitarem um amigo deles que é amigo desde os tempos da juventude. tivemos todos um jantar muito emocionado - minha mãe e minha avó não paravam de chorar lembrando da emoção desse encontro e percebendo que nos achamos tão senhores do controle de nossas vidas mas ainda que autores e sujeitos somos também assujeitados - o amigo de meu avô, ainda que mais novo que ele, está com um problema neurológico degenerativo, o que significa que ele não consegue falar e se locomove com dificuldade, ainda assim, na hora marcada de meu avô ir visitá-lo, lá estava ele todo arrumado e cheiroso, esperando de braços abertos pelo encontro. minha mãe conta que choraram muito. minha avó conta que ele não parava de olhar nos olhos, de tocar meu avô - como quem queria dizer o que não podia dizer. sei que as duas disseram que foi um sufoco para conseguirem ir embora, porque ele não largava o meu avô, a minha avó ou a minha mãe. ficava com as mãozinhas presas neles, com aqueles olhos que gritavam tanto. minha mãe disse que ele balbuciava sem parar "alegria. reecontro. meu maior amigo". nós correndo para ter dinheiro, para ter viagens, para ter apartamentos, para ter carros, para ter roupinhas, para ter sei lá o quê, nunca temos tempo de simplesmente estar com quem gostaríamos, e aí vem a vida e nos conduz a um estágio em que já não podemos expressar o que sentimentos - e aí sim sabemos que sentimos e que sentimos muito?

a minha avó fez aniversário um mês atrás e eu dei a ideia de a família toda, os amigos, todos que ela queria bem, se reunirem para fazer um livro com um compilado de cartas de amor que se prestasse a externar como é que ela tinha sido impoirtante para que cada um se tornasse exatamente quem é, em que momento ela foi decisiva em nossa vida, para falar de nosso amor, sem precisar de sentido ou razão, simplesmente. algumas pessoas odiaram a ideia, encararam como uma competição para ver quem escrevia mais ou mais bonito, mas a imensa maioria, a gigante maioria, desde seus filhos, genros, o bispo da cidade, o prefeito, suas amigas dos tempos do colégio, as amigas mais próximas de suas filhas, ao todo, quarenta pessoas deixaram as palavras caírem no papel. quarenta pessoas me deixaram conhecer a minha amada avó ainda mais através de outros olhos que também tanto a amavam. soube que minha avó adora política, soube que ela se metia em organizações de eventos na cidade, soube que ela foi decisiva na influência da escolha por ser padre do bispo, soube que ela estudava com as irmãs e que ensinou como exercer a profissão as mocinhas mais jovens (sim, minha avó é moderna e sempre trabalhou), soube de como ela ajudou todos os irmãos e de como criou seus filhos com amor. me lembrei de todas as coisas que ela me deixou fazer. minha avó não criou nenhuma fórmula da relatividade. não teve o maior salário do banco no qual trabalhava. nunca conseguiu aprender a dirigir. não ganhou o prêmio nobel de literatura. mas ainda assim, um pouquinho a cada dia, ela deu seu tempo e sua vida pra dar significado pra outros tempos de outras vidas. ela fez a diferença, sem ambições. ela viveu e vive uma vida comum, como a da maioria das pessoas e ainda assim, ganhou, as pressas, quarenta cartas transbordantes de amor oriundas de quarenta pessoas de vida corrida que pararam e escreveram com o coração porque julgaram que ela era digna disso, que ela leu chorando pra se acabar (sim, eu puxei a minha avó).
segunda-feira foi a primeira vez que a vi pessoalmente depois de seu aniversário - minha avó não mora em Salvador - ela só me olhou, chorou, chorou, chorou e me abraçou, muito agradecida pelo melhor presente de sua vida.

Setembro chegou e em vinte e cinco dias é meu aniversário, hora de me perguntar mais uma vez: o que eu tenho feito com a minha vida? como tenho dado sentido ao meu tempo? tenho me permitido me perder? ter atos de amor? tenho dito as pessoas que elas são importantes ou ando muito preocupada em fazer sentido, em ser razóavel?

É Chico, o amor pode até não ter pressa, mas a vida tem.

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